Um itinerário de descobertas e resistências: Vila Autódromo
- Michel Gomes
- 11 de jul. de 2016
- 6 min de leitura

Vila Autódromo. Foto: Reprodução.
11:30. Laranjeiras. Rio de Janeiro. Com o tempo fechado, meus companheiros e eu saímos de casa. Depois de alguns minutos esperando, nosso ônibus chegou. O carro 183 (número da linha) estava relativamente cheio. Cada um de nós sentou em uma extremidade do veículo, sem trocar nenhuma palavra. Olhares atentos à paisagem escreviam tudo o que vinha em mente e na visão. Começava ali uma grande vivência.
Pela janela do ônibus vi um grande paredão de pedras e lá no alto algumas árvores: estávamos entrando em um grande túnel. Depois de cerca de 5 minutos o atravessamos. Naquele instante, fixei o olhar na paisagem, que bruscamente havia mudado. Antes, um bairro mais “elitista” e depois casas em um morro.
O ônibus andava rápido, mas parecia que nunca chegávamos, não sei se fora ansiedade de minha parte ou se o trajeto realmente era longo. Minutos se passaram e a primeira parada estava próxima. De um lado da rua, pessoas deitadas num colchão sob o frio e o “chuvisco” constante que caía na cidade; de outro, um rio poluído e com um cheiro nada agradável.
Ponto Final. Assim se chamava nossa primeira parada, para muitos ali realmente era o final, mas para nós, apenas o começo de um longo trajeto. Nosso ônibus agora era o 352. A linha demorava para passar, todos estavam inquietos. Enquanto esperava, não deixei de observar aquele lugar. Idosos, crianças e adultos se misturavam no meio da multidão pedindo moedas e auxílio. “Ô tio, me dá uma moeda aí”, exclamava um garoto.
Moedas, notas e até comida. Percebi que eles tinham várias coisas no chão perto de alguns cobertores. Uma mulher alimentava seu filho e, perto, um garoto fumava. Confesso que aquela criança fumando com extrema naturalidade me deixou intrigado, mas antes que pudesse analisar mais o lugar, o “querido” 352 chegou.
12:10. Entramos no ônibus em direção à Vila Autódromo. À primeira vista percebi algo diferente, aquele veículo não tinha um cobrador (no Rio de Janeiro, boa parte dos ônibus ainda têm cobradores para vender o passe de embarque). Bem naquele momento me veio à mente algumas linhas que andei na Zona Sul: ônibus em bom estado de conservação, ar condicionado e cobrador. Perguntei-me porque aquela linha não havia um, mas ninguém soube me responder, o motorista cobrou meu passe e pronto.
Novamente sentando em lugares separados do coletivo, meus companheiros e eu fomos em direção à Vila. O percurso era grande. Morros, comunidades, rios e muitas casas refletiam na janela em que eu estava. Anotando e atento a tudo ao meu redor, seguimos. Estávamos perto da Vila e o meu coração já estava acelerado, pois a ansiedade era muita.
13:00. Descemos em nosso destino. Todos estávamos apreensivos, olhando para todos os lados, sem perder um detalhe. Logo vi grandes construções: eram as obras para o Parque Olímpico das Olimpíadas de 2016. Um ônibus de trabalhadores parou no local e todos caminharam numa só direção. Fomos para o sentido contrário ao das obras, em busca de informação.
A região não tinha asfalto em toda parte e na rua onde estávamos haviam poucas pessoas, isso nos fez andar até uma farmácia para saber com certeza o lugar que deveríamos ir. Uma jovem nos ensinou e partimos acelerados, pois uma leve chuva começava ali.
“Prefeitura vira imobiliária das empreiteiras” foi a primeira frase que vi ao chegar na Vila, na parede de uma casa junto com outros pedidos indignados da população. Noutro instante, olho em outra direção e vejo uma barreira feita pelos moradores. Ali, quebraríamos um dos combinados da nossa deriva, não trocar palavras. Chegamos perto de uma mulher que estava próxima da “barricada”.
Xuxa. Apelido dado àquela mulher que era uma espécie de segurança e decidia quem entrava ou não na comunidade. Victor, nosso colega, se dirigiu a ela e explicou que éramos estudantes e queríamos ver a real situação do local, sem a maquiagem midiática dos grandes veículos de comunicação. Depois de algumas palavras trocadas, nossa entrada foi liberada.
De imediato a primeira palavra que me veio em mente foi “destruição”. Casas demolidas, entulho por todo lado e um silêncio que me deixava perturbado. De repente ouvimos um sino, o som despertou um clima pesado, senti que poderia estar em um cenário apocalíptico de algum livro de ficção, mas infelizmente não. Vila Autódromo é real, real até demais.
Após o sino tocar, os trabalhadores da obra do Parque seguiram até uma lanchonete que ali funcionava. Vimos aquilo e fomos para o mesmo lugar, com intenção de saber um rumo a ser seguido. Nos indicaram a Associação de Moradores que, no entanto, estava fechada.
Segui adiante no meio de escombros, não tirando da cabeça que embaixo dos meus pés havia casas de trabalhadores e de gente que sempre lutou para conseguir algo na vida. Não restava nada, apenas entulho, histórias e vivências resumidas em tijolos no chão.
Lá longe avistei um senhor que media a energia, um funcionário da empresa de luz do Rio, a Light. Aproximando aos poucos, eu e meus companheiros perguntamos seu nome, era José. Perguntamos há quanto tempo ele trabalhava na região, 20 anos foi a resposta. O silêncio entre nós pairou sobre o ar. 20 anos de convivência com um povo que talvez nunca mais o veria.
“Amizades demolidas” foi o termo que o Senhor José usou para definir a situação. Novamente o silêncio tomou conta, afinal, o que dizer em uma hora dessas? Conversamos mais um pouco e seguimos à procura de mais histórias, daquela Vila Autódromo que eu jamais imaginava conhecer.
As paredes das poucas casas que restavam estavam repletas de frases de luta e indignação. Numa antiga padaria restava apenas um aviso “Não haverá pão aos domingos”. No meio daquilo tudo, vi um aglomerado de pessoas, fato estranho, já que o local contava com poucos moradores ainda residentes. Aproximando percebi que eram gringos, numa espécie de tour pelo lugar.
Tentamos papo com eles, imediatamente nos indicaram a guia, Thereza. Fomos até a moça para saber mais sobre aquele grupo. Segundo ela, estavam conhecendo para ver o Rio com outros olhos. Não acreditei muito naquilo, mas continuamos o assunto e até trocamos contato, para possíveis conversas futuras.
Dialogamos com algumas pessoas que ainda estavam no lugar, todas apresentavam tristeza e algumas já mostravam a desistência da luta para continuar na Vila. A chuva engrossou, corremos e nos escondemos na varanda de uma casa. Um carro parou na rua e uma senhora trocou palavras com a motorista. Um instante depois ela se dirigiu a nós e disse “Vocês estão sozinhos?”. Falei que sim e a senhora engatou uma conversa. Jane era seu nome.
Jane afirmou ser uma das moradoras que não sairia da Autódromo. Resistência e luta vi naquela mulher simples, humilde e disposta a compartilhar conosco tudo o que sabia. Logo de início ela nos deu uma aula de política. “A justiça não está tendo forças porque toda ação emana do capital. O capital consegue impedir a Defensoria Pública, por exemplo, que é do social”, afirmou.
A chuva aumentava e o lugar em que estávamos já não nos protegia mais. Jane então nos levou para outro rumo. Foi então que surgiu Denise, uma senhorinha simpática que convidou: “gente, entra aqui, está chovendo”. Jane e ela eram amigas há tempos.
Denise nos convidou a sentar e iniciou uma fala sobre sua vida e suas dificuldades. Morando na Vila há 25 anos, o único sentimento que ela tinha era tristeza e cansaço. Com simplicidade, ela demonstrou o quão difícil estava sendo enfrentar aquilo tudo. Ao mesmo tempo, lembrou dos filhos, com orgulho: um “fazia” faculdade e outra era professora de dança.
Percebi ali que, mesmo com todos os problemas saltando aos olhos, a essência daquele povo estava firme. Ainda tinham forças para lutar. Jane se surpreendeu com as falas de Denise, pois, segundo ela, a senhora não falava com ninguém sobre a situação. “Vocês foram agraciados com a fala da Denise”. Com certeza!
De tudo o que essa senhora quis dizer, lembro bem de um trecho: “Todos os nossos vizinhos estão sendo massacrados”. Impactante? Sim. No momento contive as lágrimas, mal sabendo que viriam muitas histórias e relatos tão fortes quanto. Depois de mais de uma hora de conversa, a chuva diminui e decidimos ir embora.
No caminho fora da casa fui lembrando das falas de Jane e Denise, abismado com a falta de preocupação da Prefeitura com aquela comunidade. As pessoas estavam ali correndo riscos, mas mesmo assim não deixavam de lutar. O desejo de contribuir tomou conta de mim e de meus companheiros, o que nos motivou a produzir um curta metragem.
No meio de um chuvisco que começava outra vez, decidimos deixar a Vila e partir de volta para casa. Aquela experiência me emocionou, encantou e, mais do que isso, me fez repensar sobre a vida e sobre o nosso cotidiano.
Faço das minhas últimas palavras uma frase que li numa parede da Vila, “Coragem, lutem!”. Aos moradores da Vila Autódromo, desejo força para continuar na batalha!
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